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domingo, 13 de março de 2016

Igreja Luterana de Istambul - Conto


Igreja Luterana de Istambul


      Abortar, mascarar e submergir.

      Doravante essas palavras ecoarão em meu coração como uma canção de Satã. Abortar, mascarar e submergir. Muito simples e executável para alguém pacificado no centro de uma suíte refrigerada, vinte seguros andares acima da cidade, no hotel cinco estrelas Marmara Taksim.
      A cidade – Istambul. Constantinopla de vielas e Audis, do moderno e do antigo, encruzilhada de civilizações, encruzilhada da civilização.
      A missão fora gestada durante três meses. Todas as possibilidades pesadas, as variantes, as eventualidades. Basicamente um avançado sistema de direcionamento de mísseis, uma das muitas tecnologias que faltam ao país para dominar verdadeiramente a tecnologia aeroespacial. Para colocar melhor e também colocar melhores satélites em órbita. E, claro, construir melhores armas no processo.
      O país é o Brasil, eu sou ou era um agente da ABIN, divisão especial ASR, de Ações Sob Risco, nome insosso para o nosso incipiente serviço de operações estrangeiras.
      A tecnologia era iraniana – isso mesmo, iraniana. Estava à venda no mercado negro global, e alguém na inteligência brasileira avisou seus superiores, um deles achando por bem comprá-la.
      O encontro fora marcado pela Deep Web, a web negra e relativamente imune à bisbilhotice da NSA e outras agências de espionagem. Cinco milhões pela tecnologia, uma pechincha, mas o superior que mandou comprá-la teve problemas para arrumar a quantia. Brasil...
      O vendedor, pudemos apurar, era um dissidente religioso, cientista ligado à religião Fé Bahá’í, muito perseguida no Irã. Parece que o cara quis dar o troco, embora a religião, segundo palavras de nosso analista, ‘prime pelo pacifismo’. Bem, eu não sou psicólogo ou especialista em religiões comparadas, só cumpro missões. Um pacote em troca do dinheiro, troca rápida numa loja de tapetes, pacotes novamente trocados a 50 metros, para despiste, repassados 300 metros depois para outro agente, que pegaria o pacote a partir de um veículo em movimento.
      Os escolhidos fomos eu, Pip e Eric, a quem chamávamos de Chaparral, além de um outro elemento, franco-atirador da ABIN de Brasília, a quem eu não conhecia, e de codinome Lampião (na ASR, todos deveríamos adotar pseudônimos, nomes de guerra que deveriam ser usados nas operações.  Assim Marcelo virou Pip, e Eric, Chaparral. Eu, Sammis, virei Sam; sim, óbvio demais para um codinome que objetivava exatamente esconder minha identidade. Questionado por meu superior, quando da escolha do codinome, redargui: “Em nosso mundo, senhor, o óbvio é sempre o mais inacreditável.” Ele sorriu e não me perturbou mais sobre isso).
      Chaparral era agente experiente em ações e um exímio atirador, mas coube a Pip a função de primeiro elemento, por sua longa experiência no Oriente Médio e seu domínio do farsi e de línguas semíticas. Eu seria o elemento de meio, ou seja, pegaria o pacote das mãos de Pip e me dirigiria para uma rua próxima, passando o material para Chaparral, que de carro o levaria para o ponto de extração, onde três outros agentes aguardavam.  Coordenando a operação, o ex-delegado da PF Simeônides Faria, agora chefe de operações da ASR (segundo as más línguas, não por suas competências, que eram algumas, mas principalmente graças às suas boas relações com o partido no poder).
      Tudo que deveria ser discutido já o fora – o perigo de lidar com iranianos, o perigo de comprar tecnologias vetadas e monitoradas pelos americanos e suas vadias, o perigo de o serviço secreto turco ser alertado.
      Minha parte consistia em sair da estação de metrô no momento combinado, em meio à multidão do horário de rush, e andar em direção à loja. Pip sairia dela com o material, cruzaria comigo e trocaríamos de pastas, idênticas. Nossa cobertura era um único atirador, situado a uma distância grande demais – mas a única possível. E vulnerável, pois a ocultação de sua presença era problemática. Tudo precisava ser muito rápido.


      Já subindo as escadas, vindo da estação de metrô, pude ouvir os tiros e a multidão que corria em todas as direções, incapaz de atinar para a origem dos disparos. Instintivamente coloquei a mão na Glock sob meu paletó. Avaliei como pude o perímetro: nada, apenas pânico e terror. Fixei na loja à 50 metros, apressei o passo.
      Pip rompeu pela vidraça lateral da loja, com a pasta enfiada sob um dos braços. Caiu ao chão, imediatamente levantando-se e disparando para o interior. Um homem saiu pela porta, mas antes que pudesse fazer mira em Pip eu já lhe dera três tiros.
       – Pip! Por aqui!
       – Sam! O Mossad! Onde está o atirador???
      Notícia lúgubre, caindo como uma granada, não de estilhaços em chamas, mas de ecoante gelo em meio ao tiroteio. O serviço secreto de Israel, os melhores assassinos, não eram necessariamente nossos adversários, mas inimigos de morte dos iranianos. Mas também dos iranianos traidores? Ou talvez não soubessem? E onde estava nosso maldito atirador?
      Fugimos por entre a multidão, sendo perseguidos por um outro homem saído da loja e aparentemente outros três elementos, sendo dois homens e uma mulher.
      – Você foi seguido? –, perguntou Pip enquanto corríamos despistando nossos perseguidores.
       – Não  – respondi.
      –  Pois tome a pasta, siga para o ponto indicado, creio que somente a operação na loja foi comprometida.
      – Mas afinal o que houve lá?
      Após entrar na loja, ao avistar o cientista, cujas roupas batiam com a descrição combinada, Pip fez-lhe um sinal. Ele aproximou-se um tanto melindrado, e ambos trocaram os pacotes: a grande mala de dinheiro que Pip levava pela pequena pasta do iraniano. Imediatamente foram rendidos por um dos ‘vendedores’ da loja de tapetes, e um casal de ‘turistas’ que até então pareciam insuspeitamente observar as mercadorias. Pip entregara a mala a um dos turistas, mas aproveitando-se de um descuido da mulher, numa manobra envolvente agarrou-a por trás ao mesmo tempo em que segurava seu braço armado, direcionando o disparo instintivo dela para o abdômen de seu companheiro. Em seguida puxou-a para trás, e ambos caíram por trás de pilhas de tapete, fora da alça de tiro do elemento que disfarçara-se como vendedor. Pip sacou rapidamente sua arma, mesmo sendo acotovelado pela mulher, disparou à queima-roupa contra a nuca dela, levantando-se de um salto e disparando contra o vendedor. Iniciou-se a troca de tiros, e Pip aproveitou um momento de disparos que obrigou seu oponente a abrigar-se, para romper pela vidraça lateral. Percebera que era o Mossad pelo grito da mulher, no momento em que a agarrara: ela pediu, em hebraico, para seus companheiros atirarem neles dois.
      – O cientista estava lívido. Lívido demais, tremia demais – continuou Pip enquanto corríamos. – Ao vê-lo, soube logo que algo estava errado.
      Pip me deu a pasta, mas imediatamente aportaram à nossa frente outros dois agentes, de armas em punho. O plano de separar-nos fora comprometido também. Fomos obrigados a disparar em meio à multidão, pois os agentes dispararam contra nós.
      No novo pânico reinante, entramos por uma loja de carnes e saímos pelos fundos. Peguei a pasta, mas pedi a Pip para ignorar o protocolo e não nos separarmos. Aquela era a última missão dele, antes de ser realocado para a academia de formação de agentes, e ele já não era nenhum moleque. Ele refletiu por um momento, coisa rara nesses três anos em que atuamos juntos. E assentiu. Continuamos nossa fuga por uma rua contígua aos fundos da loja de carne, em direção à rua onde Chaparral passaria. Estávamos em cima da hora.
      Chegamos à rua atrasados, Chaparral acabara de passar, mas nos vira pelo retrovisor. Percebeu que acontecera algo, pois o plano era Pip fugir em outra direção, e eu chegar ao ponto de encontro sozinho. Mas era um bom agente, ou um idiota, dependendo de que lado e em que lugar está aquele que avalia.  Deu marcha à ré, e entramos no carro.
      – O Mossad apareceu, a operação foi comprometida. Mas temos a pasta. Atingimos três agentes deles.
      – Maldição! Já avisaram o ninho?
      – Ligarei agora.
      Liguei para o ninho, ou seja, para a suíte de onde nosso diretor coordenava a operação.
      – Anu voando para o ninho. A raposa atacou os pássaros, mas salvamos os ovinhos.
      – Onde você está, anu?  Como está a ninhada?
      – Completa e reunida, ninho. Migrando para o oceano neste momento.
      Houve um silêncio de oito ou nove segundos do outro lado, que psicologicamente durou como alguns minutos.
      – Abortar o voo, anu. Repito, abortar o voo. O oceano está poluído.
      – Mas como, ninho? Quais as instruções?
      – Operação comprometida. Abortar, mascarar e submergir. Repito: abortar, mascarar e submergir.
      Quedamos em silêncio enquanto Chaparral dirigia pelas ruas movimentadas de Istambul, agora indo em direção à parte nova da cidade.
Então fomos abalroados, por um furgão que surgiu de lugar nenhum avançando em direção à porta direita do veículo. Nosso carro fez menção de capotar, mas elevou-se como num cavalo-de-pau e caiu novamente. O lado abalroado era o lado de Pip (eu sentara-me no banco traseiro), que, sempre ágil, imediatamente começou a disparar contra o veículo agressor. Saltei do carro pelo lado esquerdo e disparei também, no que fomos brindados com mais tiros. A pasta, ela deveria estar com escutas ou um sinalizador. Que idiotas! A simples menção da palavra Mossad parece ter nos ‘emburrecido’ ou pior, inadmissivelmente apavorado, e nem nos perguntamos sobre a segurança da pasta.
      Chaparral saíra do carro, e juntos atravessamos a pista movimentada, saltando por sobre a mureta de concreto que separava as duas mãos da via, indo em direção a um pequeno conjunto de dutos de esgoto.
      – Algo está errado! O atirador não estava lá, mas antes de entrar na loja certifiquei-me à distância de sua presença e posição – disse Pip.
      Chaparral sangrava do ombro, logo ele que pouco participara dos tiroteios fora atingido.
      – Fujam, eu vou tentar atrasá-los. Estou com um mau pressentimento, não busquem auxílio diplomático ou da ASR, tentem sair do país por conta própria – disse Pip.
      – De maneira nenhuma, senhor! O senhor fugirá, eu fico para despistá-los. Deus, é sua última missão! – retorquiu Chaparral.
– Vão, idiotas! E não confiem em ninguém! Esses planos valem muito mais que cinco milhões. Talvez tenhamos sido vendidos!
      Outra estrofe da canção de Satã, de que falei no início deste relato, outro trecho que ele usaria em meus dias maus para me acordar e ver-me chorar a seco: “talvez tenhamos sido vendidos.”
      Isso explicaria o sumiço do atirador, os agentes do Mossad, o carro, e principalmente a forma como o diretor falara, sua frieza, seu quase “danem-se aí, idiotas”.
      E a escolha de Chaparral para esta missão... Chaparral caíra em desgraça diante do próprio diretor da Abin, por recusar-se a matar durante uma operação de queima. Coisa simples, em território nacional. Foram duas as ‘recusas’ consecutivas de Chaparral, e ele estava na ‘geladeira’. Por que fora enviado para este caldeirão fervente? Então o próprio diretor da ASR estaria envolvido? E por que não desconfiei dessa sujeira toda?
      Com Chaparral na retaguarda, seguimos os dutos em direção a uma bifurcação, seguida por um viaduto. Eu trazia a pasta, abrira-a ali, recolhendo os papéis, enfiando-os numa embalagem de biscoitos ou coisa parecida, que encontrara pelo chão, e desfazendo-me da pasta. Em seguida entramos por baixo do viaduto, correndo entre os carros.
      Ao sairmos do outro lado, outros perseguidores desceram de um Corolla prata e dispararam contra nós. Chaparral e eu saltamos para trás de veículos que passavam lentos no engarrafamento; Pip, que vinha atrás cobrindo nossa retaguarda, só teve tempo de virar-se para receber sua bala no peito.
      Mesmo ferido, Chaparral correra agachado entre os carros, rapidamente pondo-se em posição de flanquear nossos oponentes. Percebi sua intenção, e Pip não gostaria que eu fizesse algo diferente: levantei-me disparando com tudo que podia, dando cobertura à manobra de Chaparral. E ele emergiu quinze metros além de onde estávamos, exatamente na lateral dos atiradores, que foram alvejados rapidamente.         
      Algo grande e ruim estava em andamento, eram muitos opositores, ATÉ MESMO PARA A CAPTURA DE UM PLANO DE DIRECIONAMENTO DE MÍSSEIS. Abaixado sobre Pip, segurei em sua mão: não conseguia falar mais nada, meu amigo e mentor partia impedido de sua última palavra.  
      Maldito trabalho, maldito dia em que deixei a polícia para entrar neste lodaçal. Ao menos como policial eu morreria em casa, e não do outro lado hostil do oceano.
      – Sam! Fuja para o metrô, eu irei em direção ao porto! Vamos submergir!
      – Está bem! Tome cuidado! Lembra daquele dia no Panamá, os contêineres de carne? Tente fugir da mesma forma!
      Corri em direção à estação de metrô. Sirenes tomavam de assalto os ouvidos; ambulâncias, bombeiros, policiais em suas viaturas brancas com faixas azuis onde se lia um agora onipresente POLIS completavam a medida de nossos olhos. E mais disparos.
      Enquanto corria, subi no capô de um carro para observar. A polícia atirava contra Chaparral, que correra na pior direção, em sentido contrário ao tráfego, dando de cara com as viaturas. Ele não se renderia, ele tinha aquela coisa idiota e romântica do espião, sempre sonhara com esse trabalho de merda. Morreria atirando, esfaqueando, mordendo se pudesse. Morreria com aquele sorriso de deboche, aquele sorriso que me fazia sempre confiar em sua coragem. Agora estava sozinho.
      No metrô eu ficaria encurralado como um rato, as estações poderiam simplesmente ser bloqueadas. Precisava de uma outra saída.
      Em nossa profissão maldita, o óbvio é o mais inacreditável. Andando apressado entre um conjunto de edifícios comerciais, li uma inscrição em turco, Istanbul Luteryen Kilisesi, que nada me disse, mas logo abaixo ela tinha a legenda, em letras menores, agora inteligíveis pelo meu regular alemão: Istanbul-Lutherischen Kirche, Igreja Luterana de Istambul.
      A última vez em que entrara numa igreja fora antes de assassinar o primeiro homem, em minha primeira operação pela ABIN, na cidade paraguaia de Hernandarias. Naquela operação vi que não poderia conciliar minha fé e minha profissão, embora tantos o façam. Instintivamente sabia que cristão algum deveria portar armas, mas até ali tentava contextualizar, meu pastor era policial militar, eu fora um, e havia outros tantos. Grande lástima, são idiotas mentindo para si mesmos e para idiotas. Mas não existe um Deus idiota, um Deus que possa ser engabelado. E como mentir para mim mesmo? Abandonei a fé, lutei com todas as minhas forças para deixar de pensar nela, deixar de torturar-me por matar, por torturar, por mentir por profissão e interesse.
      Agora, cinco anos depois, exausto num país muçulmano, uma casa de Deus é tudo o que eu tenho para abrigar-me, tudo o que eu tenho para dar esconderijo às minhas mentiras e armas. Deus, que caminho tomei, que caminho tomei...
      Eram já dezoito e quinze. Algumas pessoas estavam assentadas nos bancos; um homem à porta me observou a entrar e veio abraçar-me, numa saudação tipicamente turca. Ele percebeu meu constrangimento ao abraçá-lo, mas não era por timidez ou por estar suado e fedendo: tentava evitar que ele sentisse a arma sob meu paletó.
      Sentei-me na penúltima fileira de bancos, do lado direito. Ajeitei a gola, abaixei a cabeça. Ficaria ali até terminar o culto, eventualmente iria ao banheiro e lá tentaria encontrar um espaço ou local onde pudesse esconder-me em silêncio até o dia seguinte. Ou solicitaria abrigo ao pastor, me faria de mendigo ou imigrante em trânsito para a Europa. Falava apenas alemão e inglês; torci para que ele pregasse em alemão e não em ou não apenas em turco.
      Após longos vinte e sete minutos, um jovem achegou-se ao púlpito e proferiu algumas palavras em alemão. Em seguida chamou um grupo de três mulheres, duas senhoras e uma jovem, as quais cantaram. Eles não usavam microfones nem aparelhagem alguma de som, e convidaram todos os presentes a se achegarem para os primeiros bancos, para que pudessem ouvir melhor o culto. Declinei do convite com um aceno de mão, e com alívio percebi que outros dois homens declinaram também.
      Enquanto cantavam, pus-me a refletir não sobre aquele dia miserável, mas sobre a coletânea de misérias que me levaram até ali. Minhas escolhas, minha carreira, minhas ‘conquistas’, cujos prêmios eram meus dois amigos mortos, cujo prêmio fora uma traição, cujo prêmio fora estar sendo procurado por serviços secretos de no mínimo três países. Sim, eram comendas, minhas medalhas de lata: Semi, sub vivo, sozinho e longe de todos que conhecia.
      Era o fim da festa e eu estava nu: Um abortado, um mascarado, um submerso no inferno que a vida tinha pra oferecer. Que tal? Escolhi viver pela espada: Cristo disse que morrerei pela espada. Por que não me levanto de uma vez e vou lá para fora ser morto por israelenses, turcos ou brasileiros que vendem brasileiros?
      Um senhor subiu ao púlpito, todos se levantaram. Levantei-me também. Ele procurou por instantes um trecho em sua Bíblia, e começou a ler.
      Se você é ou já foi um cristão, notadamente um cristão evangélico, deve estar familiarizado com o fato de que Deus fala poderosamente em momentos assim. São mesmo os momentos eleitos. Em meu coração imaginava que Ele não perderia a oportunidade, e faria o homem pregar sobre algo como as agruras do filho pródigo. Mas o Deus-que-não-desiste foi ainda além: o trecho lido era de Gênesis 37, versículos 12 a 36. José sendo lançado num poço, e depois vendido por seus irmãos. Esperava por acusação; ouviria o relato sobre o sacrifício de um inocente, a traição e o degredo.
      Eis-me no poço, eis onde todas as minhas boas intenções me trouxeram. Como li certa vez, e jamais me esqueci: todos os caminhos levam ao tribunal de Cristo. Não sou o fiel José, sou um qualquer que trocou Cristo pela fruição que o mundo apostou na mesa, aposta que ele me fez vencer, e que ele venceu: seria eu homem o suficiente para transformar essa situação, esse literal fundo do poço, em algo benéfico para mim, para mais alguém?
      Esforçando-me para compreender a mensagem, pensava também no que faria. Poderia tentar voltar ao Brasil, descobrir o que acontecera, vingar-me se possível e caso os fatos realmente concretizassem nossas suspeitas. Mas nesse caso, as chances de eu ser morto, no Brasil ou a caminho, eram incomparavelmente maiores.
      Tinha o dinheiro, a conta secreta em Luxemburgo. O falsário em Marselha, especializado em documentos sul-americanos. Ele poderia confeccionar-me documentos de fina falsificação, e dali eu poderia tentar recomeçar, como o filho de Jacó, num ‘Egito’ a escolher, embora com o vingativo Mossad e outros em meu encalço.
      Poderia também jogar alto no velho jogo sujo: tentar revender no mercado os papéis (que tipo de cientista idiota não digitalizaria isso? Medo do poder rastreador (on e off line) da NSA? Das novas granadas de pulso eletromagnético, que se dizia que os americanos já possuíam, e eram capazes de apagar informações de discos rígidos, pendrives e, claro, inutilizar quaisquer parafernálias eletrônicas?). Ou poderia, mesmo traído por parte de meus ‘irmãos’, de alguma forma entregar a tecnologia ao Brasil, dar-lhes o tão almejado trigo. Como José.
      De lapsos em lapsos, deixava de prestar atenção no sermão para juntar os cacos de ideias e traçar meus planos, sempre três, o velho A, B, C. Como em tantas outras vezes, mas agora de uma maneira anabolizada, o tempo oferecia-se como meu inimigo, ou só mais um deles, só mais um dos gigantes que me encurralavam. Defini as três opções.
      O plano A: sair da Turquia, entregar os papéis nalguma representação diplomática num dos países circunvizinhos (três cópias entregues em representações brasileiras em três países diferentes), sacar o dinheiro em Luxemburgo, providenciar documentos falsos, e seguir a sina do traidor, fazer o que fazem traidores quando descobertos: mascarar & submergir, abrigar-me nas sombras. E tentar fazer o que tantos e tantos traidores não tiveram oportunidade, tempo hábil, a singeleza da coragem: Abandonado pelos meus mas abalroado por uma nova chance, encontrar um lugar seguro e voltar para o aprisco deste Deus que não trai. E viver em paz com todos, se possível for.
      O plano B era a direta antítese do A: Simplesmente alcançar de uma vez o fim merecido, o fim dos que vivem pela espada. Sim, abandonar a igreja e ir para fora combater meus perseguidores. Disparar com o abrasante prazer da fúria cada tiro, os tiros derradeiros de minha perícia, e fruir sua doce canção; e tombar no chão sarraceno como meus amigos.
      Se a política é o jogo sujo por natureza, a geopolítica é o poker dos satanases. Quanto ao Brasil, os partidos no governo mudam, mas meu país nunca teve arroubos imperialistas; possui mesmo uma divertida, embora nobre, inabilidade para a vilania. Porém precisa defender-se, defender-se dos chacais. Precisa de informação, o tipo de poder mais básico, molecular, elementar. O plano C seria então um complemento do A; ou melhor, de meu plano de redenção e de meu plano de perdição, seria a síntese: Pois eu posso conseguir informação. É o que sei fazer de melhor. Agora livre das amarras institucionais, que, embora poucas, sempre foram algo sufocante nesse ramo, posso oferecer minha vida em holocausto, e militar até o último suspiro, até que o Mossad ou qualquer me alcance. Ajudando meu país de dentro das sombras. De dentro do Egito. E mais, posso ajudar nações miseráveis a identificar seus inimigos, seus exploradores e manipuladores. Seguir de uma outra maneira a trilha de Assange, de Snowden.
      E retornar ao aprisco. Sim, doravante ninguém me forçará a matar; e espero nunca mais ter que matar. Ah!!! Como um homem pode ser idealista quando está prestes a ser eliminado! Oh Deus, que maldita vida a minha! Tenha misericórdia deste porco, desse saco de ossos angustiados...  
      Sei que é uma proposta a mais miserável, e fácil de ser feita aqui, novamente num banco de igreja, novamente encurralado, novamente no poço. Tudo que tenho é esse resto de vida, e esse ofício amaldiçoado. Mas se é Tua vontade, usa, Senhor, meu dom miserável para promover justiça na terra...
      Se essa pregação é mesmo para mim, se sou o José vendido, se foi Tua mão o que lá fora distorceu as probabilidades para me fazer sobreviver, preciso então ir para fora, encontrar minha posição no tabuleiro, no Egito tão grande em deserto e dor. E reassumir o controle.

      Mas antes o primeiro passo, preciso escalar esse poço em que fui por meus irmãos abortado, mascarado, submerso. Preciso sobreviver.

Sammis Reachers

Conto do livro O Pequeno Livro dos Mortos (Editora Letras e Versos, 96 págs., R$ 20,00). Para saber como adquirir, escreva para  sreachers@gmail.com


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